A série de quatro reportagens é baseada em supostas trocas de mensagens entre o procurador da República Deltan Dallagnol, outros integrantes da força-tarefa da Lava Jato e com o então juiz federal Sérgio Moro, que era responsável por julgar os casos da Lava Jato na 1ª Instância da Justiça em Curitiba (PR), onde a investigação começou.
A BBC News Brasil não conseguiu confirmar de maneira independente a veracidade das mensagens reproduzidas pelo The Intercept, mas a série de reportagens tem movimentado autoridades e políticos desde a noite de domingo.
Segundo os textos publicados pelo Intercept, as conversas de Dallagnol mostrariam “motivações políticas” que teriam guiado a atuação dos investigadores da Lava Jato. Em nota publicada na madrugada desta segunda-feira (10), a força-tarefa disse que sua atuação “é revestida de legalidade, técnica e impessoalidade”.
“A imparcialidade da atuação da Justiça é confirmada por inúmeros pedidos do Ministério Público indeferidos, por 54 absolvições de pessoas acusadas, e por centenas de recursos do Ministério Público”.
Ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) comentaram o assunto ainda no domingo.
Para Gilmar Mendes, as alegações contidas nas reportagens precisam ser apuradas. “O fato é muito grave. Aguardemos os desdobramentos”, disse o ministro em mensagem de texto à reportagem da BBC News Brasil.
Mendes faz parte da Segunda Turma do STF que analisa um pedido de suspeição de Sérgio Moro. Em dezembro do ano passado, Mendes pediu vista para se debruçar sobre o caso.
No pedido, a defesa do ex-presidente Lula (PT) alega que Moro não teria condições de julgar o petista; pede a nulidade de todos os atos processuais praticados pelo ex-juiz e a libertação de Lula.
O assunto também foi comentado pelo ministro Marco Aurélio Mello, do STF. Segundo ele, as supostas mensagens colocam em xeque a imparcialidade esperada da Justiça.
“Apenas coloca em dúvida, principalmente ao olhar do leigo, a equidistância do órgão julgador, que tem que ser absoluta. Agora, as consequências, eu não sei, Temos que aguardar”, disse ele ao jornal Folha de S. Paulo.
“Isso (relação entre juiz e investigador) tem que ser tratado no processo, com ampla publicidade. De forma pública, com absoluta transparência”, disse.
O que Moro teria feito, segundo o Intercept
As reportagens afirmam que Sérgio Moro extrapolou seu papel como juiz ao trabalhar em conjunto com os procuradores para prejudicar os réus e de pessoas investigadas – Moro teria orientado Deltan Dallagnol sobre a melhor ordem para deflagrar fases da Lava Jato; e teria indicado possíveis delatores aos procuradores.
Uma das reportagens publicadas pelo The Intercept reproduz suposta mensagem de Deltan Dallagnol a respeito da denúncia contra o ex-presidente Lula no caso conhecido como “Tríplex do Guarujá”.
A denúncia apresentada pela Lava Jato resultou na primeira condenação de Lula por Sérgio Moro, em julho de 2017. Segundo a peça do MPF, a empreiteira OAS teria tentado presentear o ex-presidente com um apartamento de três andares no balneário do Guarujá (SP), em troca de contratos com a Petrobras – a transação não foi concluída.
Segundo o relato do The Intercept, Dallagnol teria dúvidas sobre a tese da acusação. Quatro dias antes de apresentar a denúncia, ele teria escrito aos seus colegas procuradores:
“Falarão que estamos acusando com base em notícia de jornal e indícios frágeis… então é um item que é bom que esteja bem amarrado. Fora esse item, até agora tenho receio da ligação entre Petrobras e o enriquecimento, e depois que me falaram tô com receio da história do apto (apartamento)… São pontos em que temos que ter as respostas ajustadas e na ponta da língua.”
Sobre este ponto, a força-tarefa da Lava Jato disse que “apenas oferece acusações quando presentes provas consistentes dos crimes. Antes da apresentação de denúncias são comuns debates e revisões”.
“No caso Tríplex, a prática dos crimes de corrupção e lavagem de dinheiro foi examinada por nove juízes em três instâncias que concordaram, de forma unânime, existir prova para a condenação”.
Outras mensagens, desta vez em um grupo de procuradores da Lava Jato no aplicativo Telegram, mostrariam os investigadores preocupados com a possibilidade de Lula conceder uma entrevista à jornalista Mônica Bergamo, da Folha de S. Paulo.
As conversas teriam ocorrido no fim de setembro de 2018, apenas duas semanas antes do primeiro turno das eleições do ano passado. O ministro do STF Ricardo Lewandowski tinha acabado de determinar, em decisão liminar (provisória), que Lula poderia conceder a entrevista.
“Que piada!!! Revoltante!!! Lá vai o cara (Lula) fazer palanque na cadeia. Um verdadeiro circo”, teria escrito a procuradora Laura Tessler. “Sei lá… mas uma coletiva antes do segundo turno pode eleger o (Fernando) Haddad”, continua ela, referindo-se ao então candidato presidencial do PT.
O procurador Januário Paludo discute no grupo formas de lidar com a decisão de Lewandowski. “Plano a: tentar recurso no próprio STF, possibilidade Zero. Plano b: abrir para todos fazerem a entrevista no mesmo dia. Vai ser uma zona mas diminui a chance da entrevista ser direcionada”.
Sobre este tema, a equipe comandada por Dallagnol disse que “a prisão em regime fechado restringe a liberdade de comunicação dos presos, como já manifestado em autos de execução penal, o que não se trata de uma questão de liberdade de imprensa. O entendimento vale para todos os que se encontrem nessa condição”.
Moro: ‘Não tem nada ali’
Hoje ministro da Justiça e Segurança Pública de Jair Bolsonaro (PSL), Sérgio Moro disse em sua conta no Twitter que há “muito barulho” por causa das “supostas mensagens obtidas por meios criminosos”. “Leitura atenta revela que não tem nada ali apesar das matérias sensacionalistas.”
Moro também divulgou uma nota oficial, por meio de sua assessoria de imprensa.
“Sobre supostas mensagens que me envolveriam publicadas pelo site Intercept neste domingo, 9 de junho, lamenta-se a falta de indicação de fonte de pessoa responsável pela invasão criminosa de celulares de procuradores. Assim como a postura do site que não entrou em contato antes da publicação, contrariando regra básica do jornalismo”, diz um trecho.
“Quanto ao conteúdo das mensagens que me citam, não se vislumbra qualquer anormalidade ou direcionamento da atuação enquanto magistrado, apesar de terem sido retiradas de contexto e do sensacionalismo das matérias.”
Lava Jato: vazamento foi ataque criminoso às investigações
A força-tarefa da Lava Jato enviou uma primeira nota a jornalistas por volta das 20h do domingo. Um segundo texto, respondendo em detalhes às reportagens, foi disparado depois de meia-noite.
No primeiro texto, o grupo de quinze procuradores disse que seus integrantes “foram vítimas de ação criminosa de um hacker”, que “praticou os mais graves ataques à atividade do Ministério Público, à vida privada e à segurança” dos investigadores.
Em sua conta no Twitter, Deltan Dallagnol se limitou a reproduzir trechos da primeira nota.
“A ação vil do hacker invadiu telefones e aplicativos de procuradores da Lava Jato usados para comunicação privada e no interesse do trabalho, tendo havido ainda a subtração de identidade de alguns de seus integrantes”, diz um trecho desse primeiro texto.
O texto da força-tarefa prossegue para dizer que “não se sabe exatamente ainda a extensão da invasão”, mas que há o receio de que incluam “documentos e dados sobre estratégias e investigações em andamento”.
Em seguida, a nota afirma que “Há a tranquilidade de que os dados eventualmente obtidos refletem uma atividade desenvolvida com pleno respeito à legalidade e de forma técnica e imparcial, em mais de cinco anos de Operação”.
“Os procuradores da Lava Jato em Curitiba mantiveram, ao longo dos últimos cinco anos, discussões em grupos de mensagens (…), em paralelo a reuniões pessoais que lhes dão contexto”, diz a nota.
“Vários dos integrantes da força-tarefa de procuradores são amigos próximos e, nesse ambiente, são comuns desabafos e brincadeiras”, afirma o texto do grupo coordenado por Dallagnol.
“De todo modo, eventuais críticas feitas pela opinião pública sobre as mensagens trocadas por seus integrantes serão recebidas como uma oportunidade para a reflexão e o aperfeiçoamento dos trabalhos da força-tarefa.”
Na segunda nota, o grupo chamou a atenção para o fato de que “nenhum pedido de esclarecimento ocorreu antes das publicações, o que surpreende e contraria as melhores práticas jornalísticas. Esclarecimentos posteriores, evidentemente, podem não ser vistos pelo mesmo público que leu as matérias originais, o que também fere um critério de justiça”, diz o texto.
“Além disso, é digno de nota o viés tendencioso do conteúdo divulgado, o que é um indicativo que pode confirmar o objetivo original do hacker de, efetivamente, atacar a operação Lava Jato, aspecto reforçado pelo fato de as notícias estarem sendo divulgadas por site com nítida orientação ideológica”, afirma a força-tarefa.
Defesa de Lula: reportagens mostraram ‘conluio’
O advogado Cristiano Zanin Martins, que defende o ex-presidente Lula, também publicou nota sobre o assunto. Segundo ele, as supostas mensagens reproduzidas pelo The Intercept mostram um “conluio” entre Moro e os investigadores, para “atuarem politicamente condenando o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva em um processo sem provas”.
“A atuação ajustada dos procuradores e do ex-juiz da causa, com objetivos políticos, sujeitou Lula e sua família às mais diversas arbitrariedades. A esse cenário devem ser somadas diversas outras grosseiras ilegalidades, como a interceptação do principal ramal do nosso escritório de advocacia para que fosse acompanhada em tempo real a estratégia da defesa de Lula, além da prática de outros atos de intimidação e com o claro objetivo de inviabilizar a defesa do ex-presidente”, diz um trecho da nota de Lula.
“Ninguém pode ter dúvida de que os processos contra o ex-presidente Lula estão corrompidos pelo que há de mais grave em termos de violações a garantias fundamentais e à negativa de direitos. O restabelecimento da liberdade plena de Lula é urgente.”
Ao longo da noite de ontem, o tema também gerou reação da defesa de outros réus da Lava Jato.
Conhecido como Kakay, o advogado Antônio Carlos de Almeida Castro não atua na defesa de Lula, mas defende outros réus e investigados da Lava Jato no STF.
Segundo ele, “as questões que estão sendo reveladas são de uma gravidade ímpar. Mesmo eu, que sou um crítico contumaz dos excessos da operação Lava Jato, não poderia imaginar o grau de promiscuidade, de crimes, se se comprovar o que consta das gravações”.
Para Kakay, “é necessário uma investigação profunda para saber se havia uma organização criminosa tentando usar a estrutura do Poder Judiciário em proveito próprio e com fins políticos. O Brasil precisa e merece saber a verdade. O Judiciário está sob suspeita”.